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A carne mais barata do mercado

por Lídice da Mata*
lidice@lidice.com.br

“A carne mais barata do mercado é a carne negra. Tá ligado que não é fácil, né, mano? Se liga aí”.

Infelizmente, e absurdamente, os versos da canção A Carne, composta por Seu Jorge, Ulisses Capelleti e Marcelo Fontes do Nascimento, que ganhou o mundo na voz de Elza Soares, se aplicam literalmente no episódio ocorrido no último dia 26 de abril, em uma das lojas da rede de supermercados Atakarejo, no bairro do Nordeste de Amaralina, um dos mais populares e populosos de Salvador-BA, com 80 mil habitantes.

Ian Barros, de 19 anos, e o tio Bruno Barros, de 29, tiveram ali o início do último capítulo de suas breves vidas. Após terem sido acusados do furto de peças de carne pelos seguranças do mercado, que em 2020 registrou lucro líquido de R$ 59 milhões, os jovens foram, segundo testemunhas, entregues a traficantes da região e submetidos ao julgamento do chamado “tribunal do crime”, que é quando líderes de facções criminosas sentenciam à morte aqueles que julgam terem agido fora da conduta tida como “correta”.

Moradores da comunidade pobre de Alto de Coutos, no subúrbio da capital baiana, Ian e Bruno não tiveram a mesma sorte da cliente de uma padaria na localidade Patamares, na Orla Marítima de Salvador. Na mesma semana em que eles foram cruelmente assassinados, uma mulher foi flagrada furtando um pedaço de queijo e sequer foi revistada. E por que isso aconteceu? Foi por conta justamente do racismo estrutural, assunto que vem sendo exaustivamente debatido no Brasil.

De um lado, tínhamos homens pretos a pé tentando sair do mercado com pacotes de carne escondidos. Do outro, uma mulher branca que havia chegado ao estabelecimento em um automóvel cujo valor é estimado em R$ 170 mil. A pena prevista para o crime de furto varia de um a quatro anos de prisão ou até mesmo revertida em multa, mas o filho e o neto da dona de casa Dionésia Pereira dos Santos, de 58 anos, não tiveram nem a chance de se defender.

A investigação policial do caso aponta que a eles foi cobrado o valor de R$ 700 para aquisição das carnes e posterior liberação, o que foi registrado em um aplicativo de mensagens com um áudio enviado por Ian a uma amiga. Como a quantia não foi obtida, tio e sobrinho foram conduzidos por homens armados e submetidos a uma sessão de tortura até a posterior execução sumária.

Parentes e amigos das vítimas, que não quiseram se identificar, falam em pelo menos 30 tiros. O desfecho macabro dessa desastrosa operação, que aponta para uma parceria informal entre a segurança do estabelecimento e os traficantes locais, foi relatado por dona Dionésia, que contou à imprensa o estado em que foram encontrados os corpos de Ian e Bruno: totalmente desfigurados no porta-malas de um carro na comunidade da Polêmica, bairro de Brotas, onde dias antes a Guarda Municipal de Salvador promoveu momentos de terror para “vingar” o assassinato de um agente ocorrido na região.

O caso dos rapazes do supermercado da Rede Atakarejo ratifica algo que, infelizmente, é cada vez mais comum nas grandes cidades brasileiras: são os jovens negros as principais vítimas da violência endêmica em nosso País.

Em 29 audiências da CPI do Assassinato de Jovens, realizadas pelo Senado Federal em 2015 e 2016, eu, como presidente daquela Comissão, pude comprovar isso e acompanhar de perto mais de 200 depoimentos.

O relatório do então senador Lindbergh Farias (PT-RJ) apontou que o homicídio continua sendo a principal causa de morte de jovens negros, pobres, moradores da periferia dos grandes centros urbanos e, mais recentemente, também do interior do País.

Entre as mais de 50 mil pessoas assassinadas anualmente no Brasil, quase metade é de jovens entre 16 e 17 anos, tendo os homens como mais de 90% das vítimas. O número de pretos ou pardos mortos de forma violenta é três vezes maior que o de brancos.

Em Salvador, onde a população é majoritariamente formada por negros, o medo da violência apavora principalmente os moradores da periferia. Muitos deles chegam a temer mais as forças de segurança. Na CPI, ouvi de um estudante da Universidade Federal da Bahia o relato de que ele havia confeccionado uma blusa com o nome do curso e da instituição de ensino, pois já havia sido agredido em algumas abordagens policiais.

Voltando à morte dos rapazes detidos no supermercado, é importante que seja feita justiça, pois o crime de furto não justifica a execução dos suspeitos. Tanto os responsáveis por entregar Ian e Bruno para serem fuzilados por traficantes, quanto os donos do supermercado, que são responsáveis indiretos pelos assassinatos dos dois, precisam responder na Justiça e, assim como ocorreu com a rede Carrefour, no Rio Grande do Sul, a indenização das famílias é o mínimo que os responsáveis pelo Atakarejo devem fazer para minimizar os danos provocados por essa barbárie.

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